A história da salvação, iniciada
com o chamamento de Abraão, vem apresentada pelos autores como um
caminho cheio de obstáculos. Este primeiro relato revela já alguns
aspectos típicos da história que se desenvolverá largamente em todo
o livro do Génesis.
A história da
salvação: • é querida e conduzida por Deus, e desenrola-se não
obstante as dificuldades e os perigos que incidem sobre os
protagonistas. • tem necessidade da coragem e da fé dos protagonistas,
que são “postos à prova” por Deus. O Senhor põe os justos à
prova (Sl 11,5). • revela a dupla acção de Deus: a de salvar quem
está injustamente oprimido e impossibilitado de se defender e a
de atingir quem realiza más acções, para o incentivar à
conversão.
v. 10"houve uma época
de fome na região." As lamentações de Jeremias (4, 4-10)
e Joel (1,16-20) dão uma ideia da tragédia da fome,
recorrente no Médio Oriente, devido à seca. e Abraão desceu ao Egipto... No Egipto as inundações do Nilo
faziam com que a seca não se fizesse sentir e era costume descer-se
da Palestina ao Egipto para se encontrar pasto para os animais e
alimento para a própria família. Abraão sente-se co-responsável da
promessa recebida há pouco, a de ser o chefe do povo e ter de agir
em conformidade. Por isso procura salvar a sua vida e a da sua
família.
De
facto as promessas de Deus não se auto-realizam miraculosamente,
mas têm necessidade do empenho do homem.
Deus ajudará Abraão apenas quando
a situação se tornar incomensurável para ele. Para se colocar temporariamente na condição de estrangeiro.
Esta expressão será repetida mais vezes, referida pela Bíblia quer a
Abraão, (Gn 23,4) quer ao povo hebreu (Lv 25,23; 1Cr. 29,12-16; Sl
39/38,13; 119/118,19). Abraão é a figura do crente sempre a caminho
e permanecendo sempre estrangeiro à procura de um lugar que não
conhece (a terra que eu te indicarei). Abraão procurará a sua
segurança não na posse de um grande património, mas na confiança em
Deus que o tinha chamado.
O sentir-se estrangeiro e hóspede nessa terra será retomado pelos
apóstolos que também o referiram aos cristãos (He 11,13-16; 1P 2,11)
Porque a nossa lei e governo estão nos céus e deles esperamos
como salvação o Senhor Jesus Cristo (Fl 3,20).
É a
pertença total ao reino de Deus que nos torna estrangeiros e
hóspedes
Os cristãos são estrangeiros ao
viver pagão e ao viver sem Deus (Ro 12,12). Só quando esta terra for
“transfigurada” em novos céus e novas terras (Ap 21,1-4) é que o
homem e a mulher deixarão de ser estrangeiros e hóspedes, porque a
terra se tornará o lugar da plenitude do reino.
v. 11Olha, peço-te, eu
sei que és uma mulher de aspecto atraente… Abraão, como
semi-nómada, vive uma vida precária, em que não tem direitos nem
defensores, enquanto não pertencer a uma comunidade ou a uma tribo.
É o clássico «homem sem poder», que não conta para nada, de quem
todos podem fazer o que quiserem. Não surpreende então que Abraão
use um subterfúgio para salvar a vida e obter aquilo que espera por
direito. O autor não se escandaliza pela utilização deste
subterfúgio, mas constrói-o com arte para dizer que todos os homens
são pecadores, até os patriarcas. Isto diferencia os patriarcas das
figuras epónimas, dos heróis a quem os vários povos atribuíram a sua
origem. Deus espera que Abraão leve a sério a sua liderança, a sua
vocação.
O
autor quer sublinhar que a salvação vem exclusivamente de
Adonai, o Deus poderoso de Israel, e não da santidade dos
patriarcas.
Abraão vive de facto uma dupla
prova que resolve. de maneira sábia. Para não morrer de fome, por
causa da seca, arrisca-se a morrer pela espada por causa da
brutalidade dos pagãos face à beleza da mulher (v.15). É certo que o
autor vivia num tempo em que a vida do homem era mais importante do
que a vida da mulher e em que esta era objecto e não sujeito.
Objecto de prazer e geradora de filhos.
v.13Peço-te que sejas
minha irmã… Na alta Mesopotâmia havia o costume de adoptar a
própria mulher como irmã para lhe permitir ter mais privilégios.
v. 16Abraão recebeu
alimento, armas e gado, escravas e escravos... Abraão recebeu
tudo quanto tinha sido previsto. Foi recompensado pelo faraó que se
tinha apropriado da mulher.
v. 17o Senhor atingiu o
faraó e a sua casa com grandes pragas. Deus não aceita a
violência feita a Sara, que é vítima inocente dos avanços masculinos
e não pode defender-se. Deus pretende libertá-la e fá-lo atingindo
toda a família do faraó, de acordo com a mentalidade do tempo que
via o pecado envolver todo o clã, tendo-se compadecido apenas de uma
única pessoa.
v. 18o que te levou a
fazer semelhante coisa? Por que não declaraste que ela era a tua
mulher? O autor sublinha que a má acção permanece como tal mesmo
quando o sujeito não está disso consciente. Deus não deixa de
reprovar as acções culposas. Compreende-se que o salmista diga:
perdoai-me das culpas que não vejo (Sl 19/18,13).
O final da história é positivo: Abraão fica mais rico do que antes.
Deus libertou-o da fome e da morte. Abraão superou a prova.
Deus
serve-se dos pequenos, dos sem poder, dos sem terra, para levar
a sua salvação universal. Passar-se-á o mesmo com Jesus Cristo.