Alegria incondicional

 
"Girl Watching Clouds Float By“ - © Julie Habel
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Manuela Silva
Fevereiro 2012

A alegria incondicional é uma arma, uma bandeira contra toda a forma de alienação porque a alegria é o outro nome da liberdade, enquanto afirmação plena da nossa individualidade.

J. A. Mourão - Quem vigia o vento não semeia, p. 135.

Falar de alegria pode parecer algo insólito e até provocador nestes tempos em que as cores que mais sobressaem, nos discursos dos políticos e seus comentadores ou mesmo nas conversas banais dos nossos quotidianos, se revestem de tons bem sombrios.

A crise de que se fala parece, inevitavelmente, contrária à alegria. Terá de ser assim?

Quando na rua ou no metro olho à minha volta, dou conta de que os rostos das pessoas, novas e mais velhas, são, em geral, faces de pessoas contraídas, ensimesmadas ou zangadas, por vezes sob o disfarce da música dos seus auriculares ou sob o frenesim de uma qualquer comunicação por telemóvel. São rostos tristes, os das pessoas com que acidentalmente me cruzo, rostos que exprimem e transmitem temor, desconfiança, sofrimento, tristeza. Raramente, deparo com rostos transmissores de alegria, mas, quando assim sucede, a sua alegria contagia-me e tornam-me melhor pessoa, mais confiante e generosa.

É certo que os tempos são ásperos e cruéis para muitas das pessoas com quem convivemos – gente que viu os seus rendimentos habituais drasticamente reduzidos, gente que perdeu emprego e não vislumbra oportunidades para o substituir, jovens que, embora tentando arduamente, não conseguem entrada na profissão para a qual se prepararam, laços afectivos que foram rompidos, relações laborais demasiadamente competitivas e stressantes, enfim, todo um cortejo de condições objectivas que mais promovem a tristeza e tornam a alegria uma árdua tarefa de todos os dias.

Uma tarefa, aliás, primordial como atitude de combate contra os sistemas que tão magistralmente encontram arautos que sabem manipular a tristeza dos mais desprevenidos, para justificarem o injustificável ou fazer aceitar, como inevitáveis e até estruturalmente inovadoras, as suas práticas de dominação.

Quem se habituou a esperar uma felicidade adquirida fora de si, e a confiar no poder do dinheiro e do possuir como meios para a alcançar está, certamente, mal preparado para enfrentar as perplexidades, contrariedades e tristezas que, inexoravelmente, marcam toda a existência humana e, portanto, também a nossa. Quem naqueles fundamentos foi construindo a sua vida pessoal terá dificuldade em experimentar a pura alegria de viver o que só conseguirá escolhendo novas coordenadas de referência para o seu modo de viver.

Ao invés, quem aprendeu a acolher a sua existência e tudo o que a rodeia como dádiva, promessa, projecto em construção, poderá saborear, em todas as circunstâncias, cada momento como uma realização da sua individualidade, um gosto, um avanço em direcção a uma plenitude desejada, confiando em que nisso reside a fonte de uma verdadeira e segura alegria. Uma alegria que, para ser duradoura e autêntica, há-de mergulhar as suas raízes no desejo profundo que habita todo o ser humano e o dirige para a superação das suas frustrações, dos seus medos e limites.

A esta luz, São Paulo pôde, com verdade e audácia, convidar as comunidades cristãs do seu tempo a viver na alegria, mesmo no meio das tribulações e perseguições próprias do seu tempo. Vivei sempre alegres, dizia aos Tessalonicenses (I Ts 5,16); ou, dirigindo-se aos romanos, escrevia Sede alegres na esperança, pacientes na tribulação, perseverantes na oração (Ro 12,12), exortações a que subjaz uma ideia mestra do pensamento Paulino: a capacidade de sermos pessoas livres. Estas palavras de São Paulo revestem-se no nosso tempo de grande actualidade.

Para enfrentar com êxito a presente crise, precisamos de fortalecer a nossa liberdade individual e colectiva para discernir o que convém à alegria, sabendo bem que, como lembra José Augusto Mourão, Ser alegre não é necessariamente ver a vida cor-de-rosa… A alegria é o outro nome da liberdade enquanto afirmação da nossa individualidade.

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